domingo, 11 de fevereiro de 2018

Tempos de Guerra




Senhores e senhoras deusas. Estamos em tempos de guerra aqui na Terra. Sou primata, pensante, dançante, inventante, cantante, mulher, mãe e bruxa. Danço ao redor do fogo. Sou brasileira. E me dói esse carnaval. Dói perceber o quanto uma elite opressora ainda teima em perpetuar essa escravidão mental. Quando você abre a jaula de um macaco que viveu uma vida em cativeiro, muito provavelmente ele nem saiba como sair da cela ou o que fazer. Porque a prisão é tudo o que ele conhece. Lá ele tem comida, água e distração. Então tudo bem. Ele sequer pode imaginar o que é capaz de fazer com a própria liberdade. Talvez não imagine quantos saltos diferentes possa inventar, quantos frutos diferentes possa encontrar ou com quantos outros macacos maravilhosos ele pode rir junto até a barriga doer. Talvez não saiba quantos sóis coloridos poderá assistir ou quantos silêncios embaixo de grandes luas laranjas poderão aquecer seu coração. Talvez não saiba da fartura e da potencialidade da mãe terra alimentar bilhões conscientes da simplicidade da vida. Talvez não entenda a imensidão imponente das águas e das vidas oceânicas. Talvez não entenda a complexidade das relações dentro de uma floresta gigante. Talvez não entenda a riqueza que cresce abundante e curativa da terra. Talvez não compreenda a força de se dançar ao redor do fogo. Talvez prefira a segurança do que lhe é familiar. Me dói esse carnaval, senhoras e senhores. Estamos em tempo de guerra. Onde uns enjaulam outros em sua própria ignorância, julgando-se espertos. Mas esquecem-se das leis que regem o universo. As leis de atração. As leis de ação e reação. As leis de regeneração natural do planeta. Somos enjaulados, roubados, estuprados, sugados, violentados, oprimidos, esmagados, humilhados, sangrados e saímos felizes prá aliviar a fundura de nossas dores indecentes, vergonhosas, que vão para além do fundo do nosso abençoado aquífero Guarani. Prá esquecer nossa desgraça. Sem saber que esse tempo de esquecimento acabou. Não cabe mais na nossa história. Não cabe mais no nosso peito essa sujeira embaixo do tapete da nossa mágoa travestida de piadas. Ninguém quer ser triste ou testa de ferro, mas por favor. Sejamos conscientes! Criemos coragem! Estamos em tempos de guerra! Contra todos esses ignorantes, toscos e não-pensantes seres espertinhos sanguessugas. Em guerra com os espertinhos que moram dentro de nós mesmos. Estamos em guerra, macacos!!!!!! Vamos lutar!!! Louvemos nossa história!!! Que as histórias não contadas venham à tona com força e clareza!!! Não podemos mais brincar enquanto nossas condições de vida pioram a cada dia, enquanto não tivermos perspectivas de vida decente para nossos filhos e netos. Não há mais tempo prá brincadeira. São milhões investidos nisso enquanto meia dúzia de seres estúpidos acabam com nossos direitos, com nossa estima, com nossa dignidade. E só os deuses sabem o quanto me dói esse carnaval... Quando acordaremos? Estamos em tempo de guerra! Estamos em tempo de rememoração de nossa história. Quantas pessoas foram assassinadas friamente, quantas mulheres estupradas? Quantos indígenas foram mortos e jogados nos rios, nas florestas? Quantos ambientalistas? Quantos foram escravizados? Quantos viajaram nos porões imundos dos navios negreiros, cheios de ratos, solidão, abandono e doenças? Quantos foram perseguidos? Quantos abusos?

Quantas desapropriações de terras? Quantas mutilações? Vamos esquecer tudo isso e fingir que nada aconteceu porque não é legal entrar numa bad histórica?? Oi? Estamos há exatos 518 anos desde que o primeiro navio colonizador aportou em nossa terra. As coisas melhoraram de lá até hj? Sim, obviamente. Mas às custas de sangue, suor e lágrimas. Quem disse que o Brasil é um país pacífico mente. Tivemos inúmeras guerras, conflitos e movimentos sociais. Tamoios, Aimorés, Iguape, Palmares, Invasões francesas, holandesas, Cachaça, Bárbaros, Muras, Mascates, Sal, Guaranítica, Inconfidência MIneira, Conjurações Carioca e Baiana, Suassuna, Laranjas, Farrapos, Canudos, Revolução de 30, Guerra do Paraguai, Cangaço, Araguaia etc, etc.... Se temos alguma coisa hoje é porque nossos antepassados sangraram, mataram e morreram. E aí uns abutres duma figa dão um golpe de estado na democracia, em pleno 2017 e o que fazemos? Enchemos as redes sociais de um ódio esquizofrênico bipolar ridículo e cansativo e quando chega o carnaval e a bosta da copa do mundo ficamos como estúpidos dando ibope pro esquecimento de nossas raízes. De nossa coragem. Da força de nossos avós. Como me dói esse carnaval. É tempo de respeitarmos e reverenciarmos nossos ancestrais se quisermos deixar um legado de mais solidariedade e respeito pelos nossos seres vivos. Todos com direitos inerentes à vida e trazendo em suas células a capacidade de manter uma diversidade absurda convivendo em relativa harmonia. Já chega de esquecimento. Meus deuses e deusas desse universo imenso: ajuda nosso povo. Dai-nos força e coragem para olhar as dores e as vitórias de nossos avós. Faz-nos sentir o amor e a força de nossos avós. Que consigamos reverenciar o suor, as lágrimas e o sangue sagrado derramado em cada rua construída nessa terra tão massacrada e oprimida. Estamos em tempos de guerra. Sou primata, pensante, dançante, inventante, cantante, mulher, mãe e bruxa. Hoje danço ao redor do fogo. Sou brasileira. E como me dói esse carnaval... Assim é.