sábado, 13 de fevereiro de 2010

Depilação

Ao chegar em meu prédio reparo que abriu uma loja de depilação e imediatamente lembro dos esquecidos pêlos crescidos que já mereciam eliminação há algum tempo. Deixei minhas tralhas em casa e desci para me depilar. A loja estava fechada, com a janela semiaberta. Dei umas batidinhas no vidro para me certificar de que não havia ninguém... Nada... Quando me viro para ir embora uma bendita senhora de seus trinta e poucos anos (como eu, aliás) me aparece de repente na janela com uma cabeça benevolentemente escandalosa e um sorriso de plástico assustador dizendo: 'Olááááááááááááá"! Dei um pulo e me voltei ressabiada. Ela se desculpou pelas portas fechadas, mas como não havia aparecido nenhuma cliente naquele dia, ela resolveu fechar a porta (também não entendi...): "Mas já que vc apareceu, entre!!" - se não estivéssemos em 2010, diria que quase escutei um "nhééééééééééc" de porta de castelo mal-assombrado após a sentença. Diante do clima sombrio e da estranheza do lugar, digo quase por um instinto de sobrevivência que poderia voltar outro dia, que não queria atrapalhar, enfim... A senhora gentileza prontamente responde que será um grande prazer em atender me puxando pelo braço e gritando com a boca pro interior da loja: "Janeeeeeeteeeee! Tem cliente prá vc!!". Respiro aliviada, já que não seria depilada pela senhora gentileza do sorriso de plástico assustador, quando me aparece na porta do corredor a Janete. Uma alemã de quase dois metros de altura, cabeleira crescida até a cintura, bigodes, óculos, jaleco, luvas cirúrgicas e aparelho. Senti manifestações estomacais da minha última refeição, mas o que eu era afinal: uma mulher ou um rato? Janete me perguntou o que eu ia depilar com o timbre e a velocidade de seu conterrâneo Adolf Hitler, e eu disse instantaneamente em resposta: "Axila, meia-perna e contorno, senhora!!" Ela deu um irônico sorriso metálico de volta: " Ótimo! Vc já utilizou a cera egípcia?" Respondo que não, mas que se fosse quente tudo bem. Do Egito... Deve ser boa afinal... Ela abre a cortina de entrada do corredor e me conduz até a cabine dizendo: "Vc vai adorar!" Com um frio na barriga me deito na maca e digo que não vou mais querer depilar o contorno, só a perna e a axila. Ela franze as sobrancelhas e o bigode em um nítido questionamento e digo que melhor não, vou esperar mais uns dias, não está tão ruim assim... A contragosto, Janete vira-se de costas em direção à estante de artefatos macabros depilatórios e... Em um silêncio mortal, sob as gélidas luzes brancas fluorescentes vejo a silhueta da alemã passando a espátula na tal da cera egípcia e levantando o braço como quem levanta um punhal... Eu, de suvaco em riste, dou um pulo na maca e vejo seu movimento congelado no ar: "Você está passando bem? Aceita uma água ou um café?". Digo que não, obrigada, que foi apenas um soluço... Que poderia prosseguir... Neste momento lembro-me apenas do calor da cera em meu suvaco e do suor escorrendo pela minha testa, bigode e barriga (não necessariamente nessa ordem) e solto um uivo de pavor e pânico!! Ela pula prá trás raivosamente assustada: "Nossa, vc está meio nervosa, hein? A cera está muito quente?" Dou uma risadinha sem graça e digo que "Não, imagina! Só um pouco aquecida demais, não é?" Ela limpa o suor de seu bigode, puxa um banquinho e diz: "Então vamos aguardar um pouco!"... Silêncio infinito... Nenhuma pergunta prá quebrar o silêncio me vem à cabeça, então fecho os olhos e finjo que estou muito concentrada em mim mesma... Ela quebra o silêncio enrolando a espátula na cera pegajosamente quente e levanta novamente o braço como quem pica cenouras para um ensopado. "Agora deve estar no ponto!" - diz decidida. Lasca-me então a espátula no suvaco direito com a cera caramelizada deixando mil fiapos pelo ar e imediatamente tenta resgatá-los (os fiapos), como quem se livra de moscas... Fico estupafata olhando a alemã degladiando-se com a espátula em riste e os fiapos de cera egípcia no ar, vendo pouco a pouco sua cabeleira se tornando um verdadeiro turbante de cera. "Meu Deus!" - penso com meus botões - "Essa moça vai virar uma múmia e meu suvaco a Mata Atlântica! Preciso sair daqui!". Então interrompo a batalha dizendo: "Olha, Janete! Não precisa mais depilar minha perna, não, tá bom? Eu nem ligo prá depilação na perna, só queria mesmo era salvar o meu suvaco. O que me diz?" Ela vermelha, suada e ofegante diz: "Ah, não! Agora que já comecei, vou terminar, né? Quero dizer... A gente aqui tem muita experiência na área e gosta de fazer tudo com calma, devagar e bem feito prá satisfazer nossos clientes, a senhora me entende, né?". Elevo pedidos de paciência ao meu Santo Guerreiro Expedito e sucumbo covardemente: "Ok, Janete. Vamos terminar." Janete, a estas alturas de turbante, jaleco, aparelho e óculos egipciamente encerados, troca a espátula pela pinça e começa a puxar os fios remanescentes do meu suvaco, fazendo a gentileza de me beliscar a cada puxada de pêlo. Imaginei que na Idade Média esta deveria ser uma boa estratégia de tortura. Já estava perdendo a paciência quando ela dá por finalizado o serviço suvaquesco. "Agora as pernas" - diz ofegante e quase satisfeita, para meu sofrido alívio... Troca a pinça pela espátula, enrolando-a na gosma egípcia e quando vai retirar a espátula do pote, voa um naco de cera quente na minha coxa e na saia. Dou um pulo e ela imediatamente se defende: "Ai, me desculpa! Às vezes acontece essas coisas, né? Hehehe!" Agora a vermelha e suada de raiva era eu e digo que estou com pressa, que preciso ir embora e ela diz que terminará tudo em dois minutinhos mais. A mesma ladainha do suvaco se repete com as pernas, cera quente demais, beliscos com a pinça, fiapos de cera egípcia voando pela cabine e por fim, uma solução de álcool gel para fechar os poros. Só me lembro de sentir tamanha sensação de ardência quando dormi na praia há alguns verões passados... Já tava quase mandando a Janete ir passear na Alemanha ou no Egito, fazendo bom uso da gentileza, começo a me calçar para ir embora resignada, porém depilada (que tristeza), quando a senhora gentileza enfia a cabeça grande e benevolente na cabine perguntando: " E aí, gostou?" A alemã me olha de soslaio e digo que está tudo bem agora. Eu e minha solidariedade ridícula... Vai que a alemã perde o emprego, enfim... Saio da cabine com raiva, doída e triste, pergunto à senhora gentileza na recepção de quanto foi o prejuízo e vou embora de suvaco armado deixando-a com uma ficha de cadastro por preencher na mão e uma cara de interrogação no sorriso assustador.