domingo, 8 de julho de 2018

Culpa


Por ser fora da casinha. Por não ser perfeita. Por ser tosca. Por não saber o que fazer com seus talentos. Por não estar inserida no mercado. Por ser mãe de filho vivo. Por não arriscar mais. Por girar, girar e cair sempre no mesmo lugar. Por não ser como deveria, sanguínea, coletiva, cúmplice de todas as horas. Por não ser alegria toda hora. Por não sustentar os holofotes por muito tempo. Por querer se esconder dos humanos. Por não ver mais graça nos humanos. Por se cansar rápido com o mesmo. Mais do mesmo. Pelo medo da ambiguidade. Pela consciência impotente da dualidade. Pela casca que parece grossa, mas é fina. Pela sensação de não pertencimento. Por ser estrangeira. Jupiteriana. Talvez lhe falte foco. Deveria sonhar em realizar coisas. Deveria sonhar com desejos, metas a alcançar. Mas só segue o fluxo, no automático. Inventa desejos que lhes conecte com o mundo. Inventa necessidades irrisórias para se sentir parte. Transita entre grupos, vaporosa. Sumida e aparecida. Porque, na verdade, tanto faz. Só serve se for por algo que faça brilhar. Que acrescente ou inquiete. Os sons são barulho. Ruído. A vista é a mesma. Sempre a mesma. O sem gracismo das necessidades forjadas que só servem para escravizar e continuar fingindo que elas existem. Por não ter um mestre. Por não ter um norte. Por simplificar demais a vida a ponto de não necessitar mais de tantas coisas. Mas de ainda querer tantas coisas. Falsas. Para alegrias ilusórias. Pequenas farsas supérfluas. Então os livros salvam. E aqueles queridos raros da vida também salvam. E a culpa anula. Imobiliza. Indifere. Congela. E pesa uma tonelada. A indiferença gera esquivos. Permissíveis até um limite definido desde o início. Medo de brilhar. Medo de ser injusta. Medo de ser arrogante. Medo de não conseguir chegar a lugar algum. Ser obrigada a inventar sonhos e alcançá-los. Porque ninguém vive sem sonhos. Busca Hermes. E lhe pede um sonho forjado em bronze. Para que pendure no teto como um móbile que lembre diariamente a tarefa de persegui-lo incansavelmente. Constela, faz prece, mandinga, procura relatos de E.T.s, pede forças, acende incenso, defuma casa, tem preguiça de gente mal educada. Porque foi educada na rédea curta. E aquele tanto de alegria não vivida por causa da feiura. Nobreza tem a ver com o avesso. Os pais queriam muita nobreza. Mas esqueceram que o mundo é tosco. E para estar nele, só se virar do avesso. E às vezes precisa se ligar a algo tosco pra não se sentir tão extraterrestre enquanto estiver viva. Desculpa pai, por não ser a pessoa de sucesso que você admiraria e amaria mais. Desculpa mãe, por não viver juntinho de todas. Como um macroorganismo. Acho que no meu ovo tinha muito magnésio. E eu vim assim. Voadora. Profunda. Intensa. Esquiva. E sem lugar. Me salva a arte. A palavra entalada que dá forma a angústia. A dança contida porque o espaço é restrito. A voz abafada porque a lida emudece. O traço curvo e dançante que dá vida ao carvão. A culpa pesada que seca a garganta. E o tempo implacável que derrete as vontades.

domingo, 11 de fevereiro de 2018

Tempos de Guerra




Senhores e senhoras deusas. Estamos em tempos de guerra aqui na Terra. Sou primata, pensante, dançante, inventante, cantante, mulher, mãe e bruxa. Danço ao redor do fogo. Sou brasileira. E me dói esse carnaval. Dói perceber o quanto uma elite opressora ainda teima em perpetuar essa escravidão mental. Quando você abre a jaula de um macaco que viveu uma vida em cativeiro, muito provavelmente ele nem saiba como sair da cela ou o que fazer. Porque a prisão é tudo o que ele conhece. Lá ele tem comida, água e distração. Então tudo bem. Ele sequer pode imaginar o que é capaz de fazer com a própria liberdade. Talvez não imagine quantos saltos diferentes possa inventar, quantos frutos diferentes possa encontrar ou com quantos outros macacos maravilhosos ele pode rir junto até a barriga doer. Talvez não saiba quantos sóis coloridos poderá assistir ou quantos silêncios embaixo de grandes luas laranjas poderão aquecer seu coração. Talvez não saiba da fartura e da potencialidade da mãe terra alimentar bilhões conscientes da simplicidade da vida. Talvez não entenda a imensidão imponente das águas e das vidas oceânicas. Talvez não entenda a complexidade das relações dentro de uma floresta gigante. Talvez não entenda a riqueza que cresce abundante e curativa da terra. Talvez não compreenda a força de se dançar ao redor do fogo. Talvez prefira a segurança do que lhe é familiar. Me dói esse carnaval, senhoras e senhores. Estamos em tempo de guerra. Onde uns enjaulam outros em sua própria ignorância, julgando-se espertos. Mas esquecem-se das leis que regem o universo. As leis de atração. As leis de ação e reação. As leis de regeneração natural do planeta. Somos enjaulados, roubados, estuprados, sugados, violentados, oprimidos, esmagados, humilhados, sangrados e saímos felizes prá aliviar a fundura de nossas dores indecentes, vergonhosas, que vão para além do fundo do nosso abençoado aquífero Guarani. Prá esquecer nossa desgraça. Sem saber que esse tempo de esquecimento acabou. Não cabe mais na nossa história. Não cabe mais no nosso peito essa sujeira embaixo do tapete da nossa mágoa travestida de piadas. Ninguém quer ser triste ou testa de ferro, mas por favor. Sejamos conscientes! Criemos coragem! Estamos em tempos de guerra! Contra todos esses ignorantes, toscos e não-pensantes seres espertinhos sanguessugas. Em guerra com os espertinhos que moram dentro de nós mesmos. Estamos em guerra, macacos!!!!!! Vamos lutar!!! Louvemos nossa história!!! Que as histórias não contadas venham à tona com força e clareza!!! Não podemos mais brincar enquanto nossas condições de vida pioram a cada dia, enquanto não tivermos perspectivas de vida decente para nossos filhos e netos. Não há mais tempo prá brincadeira. São milhões investidos nisso enquanto meia dúzia de seres estúpidos acabam com nossos direitos, com nossa estima, com nossa dignidade. E só os deuses sabem o quanto me dói esse carnaval... Quando acordaremos? Estamos em tempo de guerra! Estamos em tempo de rememoração de nossa história. Quantas pessoas foram assassinadas friamente, quantas mulheres estupradas? Quantos indígenas foram mortos e jogados nos rios, nas florestas? Quantos ambientalistas? Quantos foram escravizados? Quantos viajaram nos porões imundos dos navios negreiros, cheios de ratos, solidão, abandono e doenças? Quantos foram perseguidos? Quantos abusos?

Quantas desapropriações de terras? Quantas mutilações? Vamos esquecer tudo isso e fingir que nada aconteceu porque não é legal entrar numa bad histórica?? Oi? Estamos há exatos 518 anos desde que o primeiro navio colonizador aportou em nossa terra. As coisas melhoraram de lá até hj? Sim, obviamente. Mas às custas de sangue, suor e lágrimas. Quem disse que o Brasil é um país pacífico mente. Tivemos inúmeras guerras, conflitos e movimentos sociais. Tamoios, Aimorés, Iguape, Palmares, Invasões francesas, holandesas, Cachaça, Bárbaros, Muras, Mascates, Sal, Guaranítica, Inconfidência MIneira, Conjurações Carioca e Baiana, Suassuna, Laranjas, Farrapos, Canudos, Revolução de 30, Guerra do Paraguai, Cangaço, Araguaia etc, etc.... Se temos alguma coisa hoje é porque nossos antepassados sangraram, mataram e morreram. E aí uns abutres duma figa dão um golpe de estado na democracia, em pleno 2017 e o que fazemos? Enchemos as redes sociais de um ódio esquizofrênico bipolar ridículo e cansativo e quando chega o carnaval e a bosta da copa do mundo ficamos como estúpidos dando ibope pro esquecimento de nossas raízes. De nossa coragem. Da força de nossos avós. Como me dói esse carnaval. É tempo de respeitarmos e reverenciarmos nossos ancestrais se quisermos deixar um legado de mais solidariedade e respeito pelos nossos seres vivos. Todos com direitos inerentes à vida e trazendo em suas células a capacidade de manter uma diversidade absurda convivendo em relativa harmonia. Já chega de esquecimento. Meus deuses e deusas desse universo imenso: ajuda nosso povo. Dai-nos força e coragem para olhar as dores e as vitórias de nossos avós. Faz-nos sentir o amor e a força de nossos avós. Que consigamos reverenciar o suor, as lágrimas e o sangue sagrado derramado em cada rua construída nessa terra tão massacrada e oprimida. Estamos em tempos de guerra. Sou primata, pensante, dançante, inventante, cantante, mulher, mãe e bruxa. Hoje danço ao redor do fogo. Sou brasileira. E como me dói esse carnaval... Assim é.