sexta-feira, 8 de março de 2019

Um buraco cortando a carne da gente...


Como eu quis chegar onde estou. Resolvida. Feliz. Acordando dando bom dia pras plantas, cachorros, pássaros e humanos. Acordar dando bom dia para os passarinhos. Por já ter ido em um lugar tão fundo onde a luz não chega e a dor sempre é. A velha sensação de não pertencimento que vira e mexe traz aquele vazio no peito, como se houvesse mesmo um buraco cortando a carne da gente no meio e fazendo olhar através. Como um buraco vazando para lugar algum. Esse vazio que volta com força em tempos de carnaval. A festa da carne, onde tudo se mistura, confunde e densifica. A festa em tempos de alegria forjada só mesmo para fingir que a autonomia pessoal é suficiente para determinar: só por hoje serei feliz. Só por hoje serei o que quiser. Só por hoje irei às ruas gritar que minha alma pode cantar e dançar quando bem entender. No carnaval. Vou prá rua gritar pro vento espalhar pro universo em espiral que o mal humano não me alcança, pois sou isso. Humano. Minha carne é meu guia. Minha carne é de carnaval, meu coração é igual. E na espiral decrescente do ralo para onde nossa energia doente, carente e impotente escoa, desce também nosso resto de dignidade. Porque apesar de para alguns sambar representar alguma dignidade, apesar dos pesares, para outros, sambar diante dessa miséria projetada para perpetuar a exploração de uns sobre outros, em carne viva, com veias abertas, com o horror pulsando nos olhos enlameados de chumbo e mercúrio... Não é possível sambar. Não é possível. Não dá. Diante do Fulni-ô amarrado e queimado vivo no Pernambuco... Um fulni-ô. Da mesma etnia dos xamãs que me benzeram há uns meses e me limparam a alma de maus espíritos e maus pensamentos. Um dos que me ensinaram uma dança ancestral tão forte e linda para Pachamama e de quem guardei um chocalho com uma coruja verde tão linda. Uma coruja linda que eles pintaram. E que na falta de referência e impossibilidade de aproximação outra, coisifica no chocalho essas coisas de alma e traz esse alento de gente antiga que sabe cuidar de terra e de gente, e que a gente criado no quadradinho, num "debaixo do bloco" de uma asa burguesa ignorante sequer imagina existir. Queimado vivo. Não posso sambar. Quando uma criança de 7 anos morre de meningite e pessoas comemoram porque foi cortado o "mal hereditário" pela raiz. Hereditariedade operária. Hereditariedade mesma que faz nossa terra continental estar dividida entre capitães do mato. Capitães hereditários dos contos da carochinha. Dos contos dos "felizes para sempre". Dessa classe média brega e imbecil que legitima esse poço sem fundo de desejos dos coronéis de merda que comandam o país e que boicotam com garras, presas e sangue no olho, qualquer possibilidade de um projeto de nação, qualquer chama de distribuição justa de recursos, qualquer esperança de equidade e justiça para todos os guerreiros originários, qualquer tanto assim de mais tranquilidade igual para todos. Legal é ter mais do que o outro e não que o outro tenha o mesmo do que eu. Se for igual prá todos, não ostento. E viver sem ostentar tira o sentido da vida. Não dá prá sambar. Desculpa frevo, maracatu, boi... Desculpa samba, amado samba... Minha carne é de carnaval, meu coração é igual. Trago no peito a dor e a alegria dos artistas. Mas  não dá mais prá sambar em tempos de genocídio indiscriminado. Não dá prá sambar quando um presidente borra botas acha que seu cargo lhe dá o direito de continuar sendo um adolescente inseguro, mimado, burro e burguês escondido atrás de uma rede virtual postando imbecilidades. Não dá mais prá sambar. E ponto. Me recuso. Quero saber onde estão nossas flechas e arcos. Quero saber onde está a tinta de guerra. Quero saber onde estão as ervas sagradas que evocam a gente toda que é sangue do nosso sangue que lutou aqui nessa terra brasilis. Porque estou pronta para a guerra. E não quero mais mostrar meu sorriso no carnaval para quem quer que seja, porque não quero mais dar pérolas aos porcos. Sorrir agora é conivência. Me recuso. Fico imaginando o dia em que multidões dessas que só o carnaval arrebanha se colocarem todas de braços cruzados em silêncio absoluto, observando os babacas que nos acham idiotas tentando nos comprar com algum farelo de pão, uma promoção de migalhas ou uma lasca de circo barato, balançar a cabeça e dizer: "Não queremos mais nada disso. Vocês têm duas opções: fujam para o subterrâneo ou para águas internacionais. Estão exilados de qualquer território." Mas então me dou conta de que eles sou eu também. Percebo que minha dor é a dor deles também. O mesmo vazio. O mesmo buraco que cresce quando chega o carnaval. A diferença está na forma de lidar com seus buracos. Alguns são monstruosos e devoradores, porque têm poder. Outros são mais modestos e, talvez com um pouco mais de poder, destruiriam uns três planetas com seu coração de buraco negro. No final das contas estamos exatamente onde deveríamos estar. Todos estamos exatamente onde deveríamos. Está tudo certo. Nossa casa está caindo como uma hora deveria cair. As vergonhas alheias diárias nos noticiários pondo em evidência exatamente toda a podridão que deveria emergir. Nada precisa ser feito. Há corda suficiente para o auto enforcamento coletivo. Está tudo correndo conforme as leis do universo. Action and reaction. Mas nesses tempos de carnaval minha tristeza não me deixa sambar. Nesses tempos, faço greve. Nesses tempos, evoco meus guias. Oro. Choro. E me recuso. A velha sensação de não pertencimento que vira e mexe traz aquele vazio no peito, como se houvesse mesmo um buraco cortando a carne da gente no meio e fazendo olhar através...

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